“A liberalização do aborto não acabou com os dramas”

entrevista por Jorge Pires Ferreira, Correio do Vouga, 18 de Novembro de 2009

Amândio Albuquerque, 72 anos, médico, está a concluir o seu mandato de três anos à frente da ADAV (Associação de Defesa e Apoio da Vida). Sucedeu a Rogério Leitão, que foi presidente desde a fundação, em 2000, a 2006, e será sucedido por Luís Manuel Pereira da Silva, eleito no dia 13 de Novembro e com tomada de posse marcada para o próximo dia 23.

CORREIO DO VOUGA – Está a concluir três anos à frente da ADAV. Que balanço faz?
AMÂNDIO ALBUQUERQUE – O mandato foi marcado pela preocupação de arranjarmos instalações que permitissem desenvolver o nosso trabalho. Estávamos instalados na Casa de Santa Zita [no centro de Aveiro], mas o espaço era apertado e não tínhamos condições para armazenar materiais e de prestar acolhimento condigno. Apresentamos o nosso projecto junto da Câmara Municipal de Aveiro, projecto de apoio à vida da grávida ou da mulher e das crianças em dificuldade, que já desenvolvemos, e de ideias futuras, como o acompanha-mento de famílias no seu próprio lar, com apoio à actividade doméstica: economia doméstica, como se trata dos bebés, etc. É nossa ambição caminharmos para aí. Neste momento já fazemos isso, mas apenas em regime de gabinete, no atendimento. O projecto foi bem acolhido e deram-nos duas salas no mercado municipal de Santiago, onde nós nos instalamos no fim de 2007.

Como funciona o espaço?
Criámos equipas de voluntariado para garantir um atendimento diário. Temos 14 voluntárias que trabalharam em equipas de duas ou três pessoas. Estão na sede de segunda a sexta-feira, das 10 horas ao meio dia. Gostávamos de abrir também da parte da tarde, mas ainda não é possível. Também atendemos pelo telefone 234 42 40 40, a qualquer hora do dia.

Nestes três anos promoveram uma campanha de angariação de sócios. Como correu?
A campanha não tem sido fácil. Algumas pessoas contribuem com donativos, mas não se tornam sócios. Perguntam se o dinheiro da quota dá para descontos no IRS e não dá. Pensámos, por isso, em criar a figura do benfeitor permanente, aquele que se compromete com um donativo anual. Temos uns 25. Aumentámos o número de sócios de oitenta e poucos para 124. Quando falo de sócios, falo dos que pagam mesmo. O número podia ser mais elevado, mas retirámos os inactivos.

Quanto é a quota?
30 euros por ano. As quotas e os benfeitores permitem-nos ter um pé-de-meia. No espaço decido pela Câmara, não pagamos renda nem luz. Só pagamos telefone e despesas de correio. Temos um fundo que permite comprar coisas que até aqui não comprávamos. E o que compramos? Essencialmente produtos para bebé, leites e fraldas.

Além da Câmara, que instituições colaboram convosco?
Temos o Banco Alimentar Contra a Fome – Aveiro, que fornece géneros alimentares que a ADAV distribui, e a Pré-Natal, que nos dás cadeiras, biberões, roupas, enfim, material próprio para bebé. Para algumas actividades, como os concertos de Natal que fizemos em 2007 e 2008, contamos com o apoio da Misericórdia de Aveiro, que cede a igreja.

Pode dar-nos alguns dados das crianças que ajudam?
Nós apoiamos famílias. No ano de 2009, estamos a apoiar 73 famílias, cerca de 240 pessoas. Em 2008, apoiámos cerca de 60 famílias. Estas 73 famílias têm 121 filhos, dos quais 61 são crianças dos zero aos 3 anos. 18 mulheres estão grávidas. Sabemos também que destas 73 famílias, 12 mães são casadas, 24 estão em união de facto, 26 são mães solteiras, quatro são viúvas e sete são divorciadas.

Que tipo de ajuda material dá a ADAV?
Privilegiamos os bebés e as grávidas, com roupa própria e alimentação saudável. Até agora, em 2009, demos mais de quatro mil fraldas, três carrinhos de bebé, 395 lençóis, 57 “babygrous”, 40 embalagens de leite para recém-nascidos, 245 de leite de crescimento, só para referir alguns exemplos.

A diversidade de situações que acima apontou leva a que a ADAV não dê apenas apoio material…
Sim. Temos também o apoio médico, jurídico e na área da psicologia. Quando temos uma necessidade, contactamos voluntários que previamente estão acordados connosco e marcamos a consulta no médico, no psicólogo ou no advogado…

Como é que as pessoas conhecem a ADAV?
A ADAV tem sido divulgada por mupis [publicidade em mobiliário urbano], em colaboração com a Câmara Municipal de Aveiro, através do boca-a-boca e dos professores, principalmente de Educação Moral e Religiosa Católica.

Qual a área geográfica em que a ADAV está mais presente?
A ADAV tem âmbito distrital, mas neste momento estamos a actuar com mais intensidade nos concelhos de Aveiro e Ílhavo e um pouco em Sever do Vouga, Oliveira do Bairro e Anadia. Gostávamos de ter núcleos de freguesia ou de concelho que nos tornassem mais próximos, com mais conhecimento das situações. Mas não é fácil arranjar quem queira empenhar-se neste trabalho. Penso que a nova direcção vai focar-se um pouco neste assunto. Estamos também empenhados em criar dentro da ADAV um conselho económico que contacte empresas que se queiram comprometer connosco com algumas importâncias, de modo a podermos ter um ou uma profissional da área da assistência social que faça um acompanhamento das situações no terreno. Esse profissional responderia também a situações emergentes de defesa da vida, como quando uma grávida, aflita, nos chama. Não podemos estar à espera da disponibilidade dos voluntários. Queremos ter alguém que vá logo dar apoio a essa pessoa. Teria de ser uma pessoa que vestisse a camisola dos nossos valores. O nosso passo seguinte tem de ser esse, para estarmos mais próximos das escolas, dos centros de saúde, dos hospitais, onde se debatem muitos dramas. A liberalização do aborto não acabou com os dramas. É preciso ir ao encontro destas pessoas.

Durante o seu mandado decorreu o referendo. De certa forma, a liberalização do aborto representou uma derrota para a ADAV, que se empenhou fortemente pelo “não”.
Nós não perdemos. A nível nacional, sim, mas a nível local, não. Percorremos o distrito todo, empenhámo-nos na causa.

A derrota não provocou a desmobilização dos voluntários da ADAV?
Não. Antes pelo contrário. O facto de haver uma lei que legaliza determinadas situações, não vem resolver as situações de consciência das pessoas. Facilita algumas, mas não resolve o problema. As pessoas contactam-nos a pedir uma ajuda. Por vezes, nem é uma ajuda material, mas de apoio psicológico e médico, depois de uma tentativa de aborto que não resultou.
Quer dizer que continua o aborto clandestino…
Parece que sim. Nós não entramos na vida íntima das pessoas. Só aceitamos aquilo que nos dizem. Ouvimos as pessoas, procuramos ajudá-las no problema concreto, mas não fazemos juízos morais.

Tem notícia de pessoas que contactam a ADAV e que, mesmo assim, acabam por provocar um aborto?
Temos. São as nossas mazelas. Dois ou três casos nos últimos tempos. Essas é que são as nossas derrotas.

A escola é uma área onde ADAV já tem desenvolvido acções e gostaria de estar mais presente…
Sim, porque surgem situações que precisam do nosso apoio. Ainda esta semana tive o contacto de uma professora, porque uma aluna de 15 anos apareceu grávida. A professora quis saber que tipo de ajudas podíamos dar.
Já colaborámos no ano passado com uma escola no Projecto de Saúde. Assinámos um protocolo com a Escola João Afonso (Aveiro) e estivemos em seis aulas. Falou-se de educação sexual, planeamento familiar, educação dos afectos… Fomos muito bem acolhidos. Este ano esperamos desenvolver um projecto semelhante numa escola do norte do distrito.

Quem intervém no meio escolar? Os voluntários?
Não propriamente. São médicos, psicólogos ou pais, pessoas credenciadas que colaboram com a ADAV. Mas não nos levam nada. Contactámo-los, dizemos que temos um projecto e perguntamos se estão dispostos a colaborar connosco. Eles aderem e vão em nome da ADAV. Gostaríamos, naturalmente, de ter uma equipa mais à mão, visto alguns vêm de Cantanhede. Outros são de Aveiro.

ADAV preocupa-se mais com o princípio da humana. Como vê o respeito pela vida no tempo actual?
Gostaríamos também ter em atenção o fim da vida. Os nossos estatutos falam disso. Prevêem o apoio à fase terminal, sobretudo das pessoas com doenças incuráveis. Mas ainda não chegamos aí. Mas em relação à pergunta, o que vejo é que estamos numa sociedade do fácil, da fuga ao compromisso. A vida é mais exigente, por um lado. O nível de vida melhorou. Mas há, talvez um efeito de marketing, que faz com que as pessoas gastem por conta daquilo que há-de vir. A vida dos velhos passa a ser um peso, porque é preciso tratar deles. E as crianças são um estorvo para um doutoramento, para arranjar um emprego… Digamos que há uma causa económica e social para a vida ter menos valor. Há uma mentalidade do descartável. Talvez a presente crise ajude as pessoas a tornarem-se mais conscienciosas de como devem gerir a sua própria vida. E, ao terem consciência disso, talvez valorizem mais a vida.

continua

Entrevista conduzida por
Jorge Pires Ferreira